Terra de lavradores, organistas e inquisidores. De amoreiras, laranjas e vento. Algemesí é uma vila espanhola que se encontra no distrito de Valência. Há quem diga que o seu nome derive da expressão arábico-marroquina mshemmsin, significando ‘lugar ensolarado’, pois o sol bate constantemente sobre este sítio. Contudo, existe a hipótese que venha do lema árabe al-khabbāzīn, que significa ‘os padeiros’.
Vila rural, cercada de arrozais, campos de laranjeiras e ganaderías de touros, situada a cerca de meia hora a sul de Valência. Parece pequena, mas é habitada por mais de vinte mil pessoas, felizes de viver aqui.
Cheguei a Algemesí numa tarde de primavera, vindo de Lisboa via avião. Todos os cafés estavam fechados, as lojas também. Tudo estava adormecido. Não por causa de ser o período da Páscoa. Não apenas por isso. Nem por causa do Ramadão, obviamente, apesar de haver um certo número de marroquinos na vila.
As lojas abrem às cinco, diz-me o meu amigo Tano, que vim visitar. Ritmos espanhóis. Há quem diga latinos, ou mouriscos.
Gosto. Preciso de calma, descanso, vácuo. Os horários na vila dos padeiros compadecem-me. Os padeiros que fazem pão com vento e sol preparam comida boa para almas inquietas em trânsito do extremo ocidente. Devem ser padeiros sábios, saídos de um conto sufi.
O vento aos poucos leva-nos a casa do Tano, um apartamento no quinto andar, no fim de uma avenida que aqui todos chamam parque. Uma espécie de Avenida da Liberdade, mas com menos avenida e mais liberdade: a do vento que me fala numa língua familiar. É o Mediterrâneo que se insinua, é o Atlântico sob anestésico que se vai deitar dentro da mala, no quarto em que deixo tudo, salvo o sopro que me leva novamente à rua.
Damos uma volta pelo centro. Enfim, a vila é pequena, o centro e o todo são o mesmo aqui. Ainda bem, que não quero andar muito.
A basílica é imponente. É clara e parece feita de areia metafisicamente esculpida em volumes talhados por anátemas da contrarreforma, mascarados por barroquismos ibéricos, que amiúde escondem vestígios de mesquita. Está fechada.
Fechada numa tarde silenciosa. Os niños jogam à bola contra as persianas das lojas desta praça central. Bate a bola contra elas, contra portões, nada reage. Ninguém se queixa. É o paraíso dos niños.

Estou de repente na Sicília. Em Caltanissetta. Arredores. Ali como aqui os topónimos árabes coincidem com retábulos de esquecimento.
A vila tem umas figuras históricas famosas. Uma delas foi um inquisidor. Por ter argumentado a favor da expulsão dos mouriscos, dedicaram-lhe uma rua, se bem que periférica.

Há muitas festas em Algemesí, mas não hoje, graças a Deus.
Numa delas, esta Plaça Mayor da basílica vem a ser submersa por pessoas e areias, estas e aquelas pisadas por touros, entre palcos circenses que relembram os dos Autos da Fé.
E há danças que parecem mouriscas para celebrar a expulsão dos mouriscos.
E há paella sem carne de porco. Paella valenciana. Nunca comi outra tão boa.
Vamos pelos carrers adormecidos, e eu acordo. Já aprendi em Lisboa a reconhecer vestígios de al-Andalus que insistem no subconsciente moral dos prédios. Tal como os azulejos que vejo na face de baixo de uma varanda em Algemesí.

A minha mulher gosta das varandas espanholas, são mais parecidas com as italianas, diz ela. Claro, é o Mediterrâneo que as saúda docemente com serenatas napolitano-damascenas. Não é o Atlântico, que as quer possuir com força berbero-viking. A varanda é embrasura em Lisboa, é sala de dança aqui no oriente ibérico.
Mas eu não quero ir à praia. Eu quero ir à procura dos padeiros de al-Andalus. Eu nunca quero ir à praia, e a esposa sabe disso. O vento também, e sopra forte. Tenho-o enquanto cúmplice, hoje.
Em Algemesí fala-se valencià. Gosto de sítios com diglossia. Não é um diagnóstico sarcástico. Ou então, se for: diga-se, autodiagnóstico. Aqui laranja diz-se taronja.
Tudo cheira a laranjeiras e limoeiros enquanto nos dirigimos para outro parque, onde os niños continuam a namorar com a bola e nós com a sombra dos taronjers.
O primeiro dia foi-se, sem encontrar padeiro nenhum. O segundo também, mas em Valência.
Balansīah das portas da grande catedral por onde se entra na antiga mesquita e se sai para outro parque que se parece com uma avenida, mas que na realidade era um rio.
Nunca pensei que um rio seco pudesse ser uma tarde tão indefinita, sem saídas e com a ausência de saudade que toda a arrogância de Expo semeia na velhice fatal e trágica do progresso.
Os taxistas em Valência são simpáticos. O valor no taxímetro é baixo, mais parecido com o de Lisboa que com o de Turim.

O terceiro dia é para os niños jogarem novamente à bola, mas desta vez no polidesportivo público da vila, para assim se esquecerem das longas caminhadas na cidade, que os pais lhe impuseram porque um dia os niños se vão lembrar delas – isso – e não de quão aborrecidas elas foram.
À tarde vou à biblioteca sozinho. Livros sobre herança do al-Andalus, nem pensar, mas a biblioteca é linda como todas as bibliotecas de vila, com jovens estudantes às quais basta uma biblioteca pintada a novo num prédio velho, com cartazes coloridos, para se sentirem cosmopolitas o suficiente, e depois ficarem mais alegres ainda por encontrar um trabalho como cabeleireira nos carrers de Algemesí e casar com um namorado que sabe tudo sobre o finíssimo humor dos touros locais.
Quantas vezes sonhei de ser natural de vila ou aldeia. Os niños são felizes aqui. Nós também. Falta-me ir à livraria, onde procuro padeiros sufis e encontro versos em valencià.
Mestissos
som mestissos
de sang ibera
de sang romana
també fenícia
un poc germànica
som mestissos
de sang beduïna
lliure y esclava
som mestissos
la nostra sang mestellada
la sang de tota la humanitat
(Miguel Català, Cavallet de Mar, Neopàtria, Alzira, 2015, p. 46)
É o quarto e último dia, é hora de comer. Tudo está fechado, e isso não me perturba rigorosamente nada.
Temos de ir para além da ferrovia, diz o Tano, há ali uma tasca na zona industrial e cigana, onde costumo ir comer com o meu ex-sogro.
Quem teria dito, na Turim de há vinte anos, meu caro Tano, quando deixavas a nossa banda sem baixista para ir atrás de uma mulher, que teríamos um dia percorrido os carrers silenciosos de Algemesí à procura de pães e arroz no vento da saudade?
A tasca chama-se Moreneta, no Carrer de l’Alcaduf, e é nela que encontro uns bons bocadillos e, finalmente, os padeiros esquecidos no Sol Invictus.
São crianças e avós que vão de bicicleta por dentro da parede enquanto bebo água tônica e aguardo as sandes.
Levam pão para Algemesí. Levam pães longos como ciprestes dourados para a vila dos padeiros invisíveis. Levam comida boa para casa, onde os niños aguardam o último almoço antes da despedida. Prometem ver-se novamente em Turim durante o verão. In shāʾ Allāh.

Quanto a mim, agora que encontrei os padeiros, posso finalmente voltar a Lisboa.
Fabrizio Boscaglia
Escrito no avião entre Valência e Lisboa, a 12 de abril de 2023
Apêndice
Abū Yazīd ordenou a um dos seus discípulos de ir comprar-lhe um pão, e assim o discípulo fez. Quando Abū Yazīd viu o pão que entretanto lhe tinha sido entregue, reparou que estava todo queimado. Ordenou, então, ao discípulo, de devolvê-lo ao padeiro, clamando:
«Que eles não pensem que os mais próximos de Deus engulam qualquer coisa!»
E ordenou-lhe de escolher, entre os pães, o mais fofo e o mais branco.
(Kitāb al-Nūr, 90)
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Com esta publicação, inauguro uma nova vertente da minha escrita e do meu site, uma vertente diarística, literária e um pouco sonhante, em que a prosa não tem pretensão de definir ou filosofemizar, antes de navegar por imagens, palavras e pensamentos, de forma solta, aberta, não superficial, mas também não académica. À procura de um contacto poético com a alma, a memória e a viagem.
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