Poemas persas, portugueses e árabes que foram lidos na Gulbenkian no «Dia Internacional da Poesia»

São aqui transcritos os poemas de poetas persas, portugueses e árabes, que foram lidos no dia 21 de março de 2023 no evento «Entre Poemas: vozes lusas e sufis», em ocasião do Dia Internacional da Poesia, na Fundação Calouste Gulbenkian. O evento foi organizado por Jessica Hallett e por mim, no contexto da exposição Sabedoria Divina: o caminho dos sufis, da qual sou curador convidado no Museu Calouste Gulbenkian.

Os seguintes poemas e textos foram lidos, durante o evento, por um grupo de leitores, acompanhados pela música de José Peixoto, nomeadamente o mediador cultural Omid Bahrami (também tradutor do persa para português), a atora Teresa Coutinho, a investigadora Shahd Wadi (também tradutora do árabe para português), o poeta Isaac Jaló e o administrador da Fundação Calouste Gulbenkian Guilherme d’Oliveira Martins.

Os poemas foram comentados em conversa literária pela diretora da comunicação da Fundação, Elisabete Caramelo, e por mim, após uma introdução do evento pela conservadora sénior do Museu Calouste Gulbenkian Jessica Hallett, a qual, juntamente com Diana Pereira do Serviço de Mediação Cultural do Museu, supervisiona o projeto «O Poder da Palavra», no contexto do qual decorre a exposição Sabedoria Divina: o caminho dos sufis.

O Anfiteatro III da Fundação estava tão cheio que foi preciso abrir mais um anfiteatro para hospedar todas as pessoas presentes. Foi um momento muito especial, aqui testemunhado por algumas fotos, que acompanham a escrita poética. As leituras foram todas em língua original e em tradução. No que respeita aos versos árabes e persas, aqui se encontram transcritas apenas as traduções.

Boa leitura!

ḤĀFIẒ

Ai, senhor da taberna, enche mais o meu copo de vinho,

pois o caminho do amor parecia ser tão fácil mas, na verdade, é cheio de curvas e dificuldades.


Enquanto esperamos que a brisa da manhã nos traga, dos seus cabelos soltos e ondulados, a fragrância do amor,

Que apertos no coração sentimos!


Como posso gozar desta demora do amor que é o mundo,

Se, a cada respiração, oiço uma voz que diz: «Prepara-te para a viagem!».


Se o senhor da taberna enfeitar o teu tapete da oração com vinho, então aceita. Se o senhor da taberna enfeitar com vinho o teu tapete, então aceita,

já que o caminhante no caminho de Deus, bem conhece as tradições da casa.


Em mar aberto e na escuridão da noite, estamos preocupados com as ondas devastadoras que aí veem,

Os que descansam na praia, como poderão saber o que nós sentimos?


[…]


Hafez, se quiseres chegar à porta da casa de quem tu amas, então não falhes:

Quando a alcançares, deixa o mundo, e segue.

[Versos do poeta sufi do século catorze Ḥāfiẓ, tradicionalmente lidos em ocasião do Noruz, festividade do Novo Ano persa.]

ʿUMAR KHAYYĀM

Comprei um jarro de agua na loja dum oleiro,

E o jarro começou a falar-me dos seus segredos.


Dizia que já tinha sido rei, e que utilizava copos dourados,

E que hoje é apenas um jarro, nas mãos de qualquer um.

[Uma das Rubaiyat, quadras de ʿUmar Khayyām (Omar Khayyam): poeta, filósofo e cientista persa do século onze.]

FARĪD UD-DĪN ʿAṬṬĀR

Ó meu coração, se estiveres apaixonado, então procura o teu amado.

Dia e noite, fica de olhos abertos, à porta, à espera do teu amor.


O ladrão do teu coração, está sempre à porta.

Abre-te então, ó coração, fica pronto e acordado.


Ninguém sabe quando é que o amor mostra o seu rosto,

Então sê tu, aquele, que fica preparado para o momento.

[Versos de ʿAṭṭār, nascido em Nixapur no século onze: figura maior do Sufismo e da poesia da Pérsia.]

MEVLĀNĀ RŪMĪ

Escuta como a flauta de cana conta uma história

– lamentando a separação:

«Desde que me cortaram do canavial,

as minhas notas arrancaram lágrimas a homens e mulheres.

Quero um coração rasgado pela separação,

para nele verter a dor do amor e do desejo.

Quem vive longe de casa espera impacientemente

pelo dia do regresso.

Cantei o meu lamento junto de todos,

Tanto com os que se alegram, como com os que choram.

Cada um interpreta as minhas notas de acordo com os seus sentimentos;

mas ninguém penetra os segredos do meu coração.»

[Prólogo do Mathnawī de Rūmī: uma das obras maiores do Sufismo e da poesia persa e universal. Tradução realizada com a ajuda de Raquel Feliciano e Diana Pereira (Serviço de Mediação Cultural, Museu Calouste Gulbenkian).]

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

É esta a hora perfeita em que se cala

O confuso murmurar das gentes

E dentro de nós finalmente fala

A voz grave dos sonhos indolentes.


É esta a hora em que as rosas são as rosas

Que floriram nos jardins persas

Onde Saadi e Hafiz as viram e as amaram.

É esta a hora das vozes misteriosas

Que os meus desejos preferiram e chamaram.

É esta a hora das longas conversas

Das folhas com as folhas unicamente.

É esta a hora em que o tempo é abolido

E nem sequer conheço a minha face.

[Sophia de Mello Breyner Andresen, Dia do Mar, 1947. Poema com referência aos poetas sufis da Pérsia, Saʿdī e Ḥāfiẓ.]

FERNANDO PESSOA

São velhas as estrelas, ellas são

Grandes. Velho e pequeno é o coração,

E contém mais do que as estrelas todas,

Sendo, sem espaço, mais que a imensidão.

[Fernando Pessoa, Rubaiyat, 2009 (1926-1935). Poema inspirado pela poesia persa de ʿUmar (Omar) Khayyām.]

MARIA GABRIELA LLANSOL

Hoje, esta manhã, fiz uma grande descoberta: não posso ser inteligente sem imaginar. É na imaginação que flui a minha inteligência e é lá que ela atravessa o seu caminho.

A conversar sinto-me embaraçada: não se imagina quando se conversa; é do meu mundo imaginário que nasce o meu mundo inteligente.

[Maria Gabriela Llansol, Caderno 1.13 (1982). Escrita poética inspirada pela leitura do poeta – e sufi ibérico – Ibn ʿArabī]

CATARINA NUNES DE ALMEIDA

Aquele que vê as profundezas do amado

e se eleva acima da vida dourada do seu rosto

e caminha por meio dele o caminho da mão palavra

e dança em redor do mastro de Maio

e roda como roda de fiar a luz

buscando nele o pão do sol

a égua corrente

a alegria inata

como fosse o seu rosto uma ligação de música

o dia da celebração das candelárias.


Aquele que vê as profundezas do amado

trepa pelo feijoeiro mágico plantado sobre a alta teologia

o fogo serpentino do seu pé é também ele amado

nenhuma fornalha tem maior lampejo

e não há prado que se mova nem medicina que nos salve

há só um ámen

no alambique do coração.

[Catarina Nunes de Almeida, Livro Redondo (2019). Poema em que ecoa a linguagem dos místicos, quiçá dos sufis.]

MUḤYĪ D-DĪN IBN ʿARABĪ

Meu coração tornou-se capaz de todas as formas:

É um pasto de gazelas, um mosteiro de cristãos,

um templo para ídolos e a Caaba do peregrino

É as tábuas da Torá e as palavras do Alcorão.

Eu sigo a religião do Amor, para onde quer que vá sua caravana.

O amor é a minha religião e minha fé.

[Versos de Ibn ‘Arabī, grande mestre sufi nascido na Península Ibérica no século doze.]

AL-SHAʿIRA AL-SHILBIYYA

Socorro!


Olhos que recusam ver,

chegou o momento para chorar,

e ver que as pedras choram

Ó tu, que vais encontrar

Aquilo que nos pode ajudar.

Na porta do Emir diz:

Ó pastor! O rebanho morre

Abandonado sem pastagem,

Deixou-o aos leões sem piedade

Silves, não! Minha Silves, foi um paraíso,

Tiranos a transformaram em fogo infernal.

São injustos, os que não temem o castigo do Senhor!

Mas a Allah, nada se pode ocultar.

[Versos da poeta Al-Shaʿira al-Shilbiyya, que viveu provavelmente em Silves, no século doze, durante o período islâmico da Península Ibérica. Tradução de Mostafa Zekri]

RĀBIʿA AL-ʿADAWIYYA

A paixão, conhecendo a Tua, encontrei

Encerrei meu coração a quem contra Ti lutou.

Segui evocando-Te: nos esconderijos do coração Tu vês, sem que nós possamos olhar-Te

Amo-Te com dois amores. Um amor feito paixão e outro digno de Ti.

Feito de paixão esse amor é lembrar-Te despojando-me de tudo que não és Tu

Digno de Ti é o amor sem universo até Te ver

Nem nesse nem naquele meu é o louvor

És Tu só o tecer da loa nos dois amores.

[Rābiʿa al-ʿAdawiyya, grande mestra sufi do Iraque do século oito. Os primeiros versos são de Taher Al-Fasha, admirador e estudioso dela, que os inseriu na versão cantada pela cantora egípcia Umm Kalthoum, ativa no século vinte.]

MARAM AL-MASRI

Sinal 5


Dissolvo-me nas mulheres

Desapareço para me tornar cada uma delas

Vejo nesta o meu olhar,

nos lábios daquela o meu sorriso

As minhas lagrimas nos seus olhos

e nos seus corpos minha alma

Comigo se parecem, e eu a elas

Nelas me reconheço, inteira e fragmentada

[Versos de Maram al-Masri, poeta contemporânea da Síria, do livro Sinais do Corpo, 2009. A mesma autora escreveu um prefácio de uma obra dedicada ao conto árabe, persa e sufi Laylā wa Majnūn.]

ʿUMAR KHAYYĀM, TRADUÇÃO DE FERNANDO PESSOA

Mandei minha alma ir atrás do Véu

Do Invisível, ver o que há de seu.

Já d’outra vida a minha alma voltou

E disse “eu mesma sou inferno e céu”.

[Poema atribuído ao autor persa conhecido como Omar Khayyam, traduzido por Fernando Pessoa (Rubaiyat, 2009) para português, possivelmente entre 1926 e 1935, a partir de versão inglesa de Edward Fitzgerald.]

MARIA GABRIELA LLANSOL

Vinda de fazer as compras, cheguei em frente do portão. Para mim, este tempo é o tempo de Ibn ‘Arabî. Ele tinha a certeza de que imaginar era aceder à auto-revelação, e que os seres se aproximavam do acto de criar, despindo-se na solidão. Que, ao acto inicial criador imaginando o mundo, respondia a criatura imaginando o seu mundo.

[Maria Gabriela Llansol, Finita. Diário 2, 2005 (1977). Escrita poética, inspirada pela leitura de Ibn ‘Arabī.]

ADALBERTO ALVES

ouve a voz rogante que até Ti vai

sob a forma secreta dum murmúrio!


traz-me a presença da Tua face apetecida!:

é contemplação que, a mim próprio, devo.


um espasmo em meu coração bateu…

será Tua presença que se anuncia ?


vem! sim, vem! e não tardes! ver

meu semblante sereno face à vida.


vem ajudar minha coragem competente

face ao tempo que é só espectro!


vem! e toda a vontade Tua assim se faça!

que seja Teu Amor espada e ceptro !

[Adalberto Alves, Uma Flor no Silêncio, 2022. Poema inspirado pelo Sufismo, sendo este autor um dos maiores divulgadores do Sufismo em Portugal.]

ANTÓNIO BARAHONA

Os Degraus


Na verdade, os degraus

para regressar ao Senhor meu Único Amigo

não são razoáveis:

pode-se subir um degrau e estar no Paraíso,

mas também se pode subir toda a vida escadarias

e nunca ver um Anjo.

[António Barahona, Aos pés do mestre, 2018 (1974). Poema em que ecoa uma inspiração sufi, por este poeta português, que abraçou este caminho espiritual.]

RUY BELO

À chegada dos dias grandes

Da luva lentamente aliviada

a minha mão procura a primavera

Nas pétalas não poisa já geada

e o dia é já maior do que ontem era


Não temo mesmo aquilo que temera

se antes viesse: chuva ou trovoada

É este o deus que o meu peito venera

Sinto-me ser eu que não era nada


A primavera é o meu país

saio à rua sento-me no chão

e abro os braços e deito raiz


e dá flores até a minha mão

Sei que foi isto que sem querer quis

e reconheço a minha condição

[Ruy Belo, Homem de Palavra[s], 1969]

ANTERO DE QUENTAL

Ignoto Deo


Que beleza mortal se te assemelha,

Ó sonhada visão d’esta alma ardente,

Que reflectes em mim teu brilho ingente,

Lá como sobre o mar o sol se espelha?


O mundo é grande — e esta ancia me aconselha

A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,

Pelo mundo procuro um Deus clemente,

Mas a ara só lhe encontro… nua e velha…


Não é mortal o que eu em ti adoro.

Que és tu aqui? olhar de piedade,

Gota de mel em taça de venenos…


Pura essencia das lagrimas que chóro

E sonho dos meus sonhos! se és verdade,

Descobre-te, visão, ao céo ao menos!

[Antero de Quental, Sonetos Completos, 1886]

Muito agradeço, e do coração, a todos os presentes, os participantes, os coorganizadores e aos amigos por terem partilhado connosco momentos de profunda inspiração poética.

Origem das imagens: Fundação Calouste Gulbenkian, Ana Maria Lopes e meu arquivo pessoal.

Fabrizio Boscaglia