Memórias sobre Pinharanda Gomes e uma mostra a ele dedicada

Conheci Jesué Pinharanda Gomes (1939-2019) em Lisboa no ano de 2017, na Biblioteca Nacional de Portugal, aquando da minha curadoria da mostra «Árabes e Islão na Literatura e no Pensamento Português (1826-1935)», na qual um dos livros expostos era A Filosofia Arábigo-Portuguesa (1991), do próprio Pinharanda Gomes. Ele estava a visitar a mostra, sozinho, eu aproximei-me. Com extraordinária humildade, Pinharanda Gomes agradeceu-me por eu ter colocado o livro numa das vitrines. Era uma escolha basicamente obrigatória, já que, até à data, aquele volume constitui o único trabalho panorâmico sobre a presença islâmica na história do pensamento português.

Desde aquele dia, começámos a ter regularmente conversas, nos espaços da Biblioteca Nacional de Portugal, da qual Pinharanda Gomes foi entre os mais assíduos frequentadores. Mais do que uma vez, o autor convidou-me à sua casa em Santo António dos Cavaleiros, e poucos meses antes dele partir estava eu, juntamente com Pedro Vistas, a preparar as perguntas para uma entrevista com Pinharanda Gomes, a qual, contudo, nunca se realizou. A saúde dele piorou, ele nos deixou em julho de 2019, sem eu ter tido a oportunidade de o visitar na sua casa. Por sua vez, o livro Orpheu Filosófico saiu em 2022, sem a entrevista que o Pedro Vistas e eu lhe queríamos dedicar naquele volume.

Após o falecimento de Pinharanda Gomes, fui logo falar com as responsáveis culturais da Biblioteca Nacional para se organizar quanto antes uma mostra sobre o maior historiador do pensamento português, um dos mais assíduos frequentadores da própria Biblioteca Nacional de Portugal, um nome relevante da cultura portuguesa contemporânea, menosprezado pela academia, mas cujos livros continuam entre os mais consultados e preciosos para gerações de estudiosos da cultura e do pensamento português. A Biblioteca aceitou com prazer, e não foi difícil obter a entusiástica colaboração de Renato Epifânio e Miguel Real, que com Pinharanda Gomes tinham privado muito mais do que eu, enquanto co-comissários da mostra.

Um dos momentos mais importantes deste percurso foi a visita a Sabugal, na Beira Alta, terra onde Pinharanda Gomes nasceu, para consultar o espólio dele, guardado no Centro de Estudos Pinharanda Gomes, que lhe é dedicado na Biblioteca Municipal de Sabugal. Fomos de carro, em novembro de 2021, o Renato, o Miguel e eu. O espólio está muito bem organizado, encontrámos ali documentos preciosos, principalmente cartas, dedicatórias, livros, que foram muito úteis para a construção da mostra. Tudo fluiu de forma fácil e num bom clima de amizade e colaboração, e a mostra ficou preparada nos dois meses seguintes, para ser inaugurada no dia 13 de abril de 2022, com o título «Pinharanda Gomes: historiador do pensamento português». No dia da inauguração, o anfiteatro estava cheio.

Em meados de setembro de 2022, a mostra fechou, tendo tido um bom sucesso em termos de público, imprensa e visitas guiadas. Realizámos um colóquio de encerramento no dia 15 de setembro, na Biblioteca Nacional. Quero aqui relembrar uma sessão específica do colóquio, intitulada «O que ainda não se disse sobre Pinharanda Gomes», que contou com os oradores António Braz Teixeira, Manuel Cândido Pimentel e Samuel Dimas. Foi uma sessão muito interessante, das quais pretendo aqui dar um meu testemunho enquanto ouvinte, curioso e estudioso do pensamento português.

Tendo conhecido Pinharanda Gomes há cerca de 60 anos e tendo desde então convivido com ele no contexto do Movimento da Filosofia Portuguesa, o filósofo António Braz Teixeira afirma, em patente provocação relativamente ao imaginário comum (e aos próprio comissários da mostra), que «Pinharanda Gomes não foi autodidata!», pois «ele teve dois mestres, Álvaro Ribeiro e José Marinho, sobretudo Álvaro Ribeiro». É, portanto «injusto classificá-lo como autodidata», pois «só o foi a nível formal», por não ter tido títulos universitários, o que neste contexto filosófico não importa absolutamente nada, porque, continua provocando o pensador, «mestres, na universidade, não há.». Braz Teixeira realça, no campo dos estudos árabes e islâmicos, que Pinharanda Gomes, com o «volume inovador» sobre A Filosofia Arábigo-Portuguesa, completou de alguma forma as pesquisas que o arabista Garcia Domingues não tinha conseguido acabar sobre o pensamento dito luso-árabe. Quanto às três culturas abraâmicas, Braz Teixeira indica ainda uma possível diferença entre o pensamento dele próprio e o de Pinharanda Gomes: segundo este, elas seriam «vias paralelas» na história do pensar luso, enquanto segundo Braz Teixeira são «raízes que vão desaguar numa foz que é a Filosofia Portuguesa». Nesta comparação crítica, Braz Teixeira assinala como Pinharanda Gomes não abordou o pensamento islâmico em Moçambique e em Guiné-Bissau durante a história ultramarina de Portugal, o que constitui um limite à tese das «vias paralelas» que continuam na história. O orador assume a tese forte, com a qual não necessariamente concordo, de que o Islão, a nível histórico-filosófico, desaparece em Portugal continental no século XVI. O pensamento «árabe» existe, segundo Braz Teixeira, como raiz da vertente onto-teológica da «Filosofia Portuguesa», personificada sobretudo no «mestre» José Marinho, enquanto Álvaro Ribeiro encarnaria a vertente complementar, mais antropológico-pragmática.

Por sua vez, António Cândido Pimentel, na sua «interrogação a Pinharanda Gomes» sobre a Saudade, questiona acerca do tema da teótica, ou divinização, da própria Saudade: será a Saudade só humana, como parece entender Pinharanda Gomes? Cândido Pimentel reflete a partir da questão: se a Saudade é «via do conhecimento do mesmo e do outro», é possível uma «teologia para a Saudade» em que a própria é «via de conhecimento de Deus e para Deus»? O autor apresenta-nos a ideia de que «Deus tem infinita Saudade de Si Mesmo», uma Saudade que é «fora do tempo» , sendo «excesso de Deus criando».

Concluiu a sessão Samuel Dimas, que falou de Filosofia da Religião em Pinharanda Gomes, novamente ao articular o pensamento do autor sabugalense com o dos “mestres” José Marinho e Álvaro Ribeiro, em particular a partir do livro de Pinharanda Gomes, Pensamento e Movimento, de 1974, reeditado em 2022 pela Fundação Lusíada. Samuel Dimas fala do diálogo, existente na obra de Pinharanda Gomes, entre este e Platão, tal como este e os dois referidos «mestres» da «Filosofia Portuguesa», afirmando que Pinharanda Gomes foi discípulo de ambos, e não só de Álvaro Ribeiro como por vezes se tende a representar. Segundo Samuel Dimas, Pinharanda Gomes concilia transcendentalismo e imanentismo, critica tanto o radical espiritualismo como o radical materialismo, superando, dentro de um paradigma cristão e trinitário, o dualismo maniqueísta gnóstico: «Pinharanda Gomes se assume monista, afirma-o explicitamente», diz Dimas. Contudo, o de Pinharanda Gomes não será, segundo Dimas, um monismo radical panteísta, antes um monismo que dialoga com o Pantiteísmo de Cunha Seixas, pelo qual Deus está presente em tudo, na Criação, apesar de ser distinto de tudo.

Sirvam estas notas como testemunho de cerca de um ano de trabalho para homenagear uma figura importante do pensamento português, com a qual tive o privilégio de partilhar alguns momentos cordiais. Para finalizar, quero agradecer a todas as pessoas envolvidas neste projeto, tanto na Biblioteca Nacional de Portugal, como no Centro de Estudos Pinharanda Comes (em especial Norberto Manso), como ainda os outros dois comissários e oradores, e particularmente à viúva de Pinharanda gomes, D. Judite Pinharanda Gomes, por todo o apoio e o carinho.

Folha de sala da mostra (PDF): https://www.bnportugal.gov.pt/images/stories/agenda/2022/pinharanda_gomes_folha_sala.pdf

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