No dia do centenário do nascimento de Eduardo Lourenço (1923-2020), publico algumas memórias e notas minhas acerca dos encontros e ocasiões em que me cruzei com o pensador e ensaísta português. Uma humilde recordação de um homem que deixou em mim uma impressão boa e invulgar.
BismiLlāh al-Raḥmāni al-Raḥīm
«Ho visto un uomo fermare un applauso», vi um homem a parar um aplauso. Esta frase frisei no meu diário, durante a primavera de 2007, quando me encontrava em Lisboa para escrever a minha dissertação de mestrado, após ter visto Eduardo Lourenço pela primeira vez, a dar uma palestra sobre Pessoa na Casa Fernando Pessoa. Lembro nitidamente o gesto, a voz dele, os olhos pequenos e brilhantes, a concentração, a seriedade alegre, envolvida e ao mesmo tempo desapegada – algo do desapego dos velhos quando são sábios – com que proferia a sua comunicação.
O público era muito numeroso, o auditório estava cheio, todos a ouvir com atenção e respeito. Quem me tinha levado ao evento era o Antonio Cardiello. José Saramago estava sentado a poucos metros de nós, na audiência. Contudo, naquele dia, a atenção era toda para o pensador e ensaísta da Beira Alta.
Quando a palestra acabou, um grande e vibrante aplauso brotou, e vi o gesto firme, digno e sensato da mão, que com autoridade e ao mesmo tempo com carinho, sem aparente vanglória, mandava à plateia parar o aplauso. São gestos que se veem frequentemente no palco, ritualizados, mas desta vez foi diferente. Parecia a sério, dava a impressão do homem resolvido, desapegado das sereias da fama e do sucesso, centrado na humildade que sempre deveria acompanhar a coragem do pensamento.
Não é frequente reconhecer em alguém do mundo das chamadas cultura e academia um traço de nobreza que eu ligo ao domínio do espiritual, e tal me pareceu o caso, se agora me foco na lembrança daquele acontecimento. A mesma impressão foi confirmada nas seguintes ocasiões em que me cruzei com ele.
O homem tinha algo de especial, algo luminoso, uma certa qualidade anímica que, no meu humilde entender, remetiam para uma inclinação natural à espiritualidade. Há pessoas que conviveram mais do que eu com ele e que de alguma maneira, indiretamente, me fizeram pensar que esta não foi só uma minha impressão, pois quando me falam do «professor Eduardo Lourenço» é como de quem para estas pessoas constituísse uma referência, não apenas intelectual e afetiva, mas também anímica.
Abro aqui uma digressão, uma reflexão, que não se prende necessariamente ao caso específico de Eduardo Lourenço, mas que me me foi sugerida pelo contacto com ele e poucas outras figuras do meio académico-cultural. Tantas vezes me pergunto que humanidade e que mundo teríamos se os grandes intelectuais, nomeadamente do Ocidente, tivessem procurado, encontrado e aceite um verdadeiro guia e uma verdadeira tradição espirituais na sua vida, em vez de se apaixonar apenas pela história da cultura e das ideias, pelos sistemas filosóficos e os seus campeões, pelas ideologias políticas e pelos pequenos mitos destas limitadíssimas “doutrinas”, muitas vezes misturados com a mitologia biográfica que as pessoas tendem a sacralizar, em vez de a transcender. Infelizmente, muitos intelectuais ocidentais (e não só) nem sabem propriamente o que é a espiritualidade (ou a religião) fora da definição académica que dão dela(s).
O que aconteceria se, em vez de terem sido “apenas” professores e pensadores, os grandes intelectuais ocidentais e contemporâneos tivessem aceite o desafio de tentar ser santos através da escola dos próprios santos? Raramente esta pergunta me se apresentou interiormente com a frequência e a intensidade com que se deu ao pensar em Eduardo Lourenço, apesar de eu não saber se ele tenha ou não tido contacto – e que tipo de contacto – com aquilo que é a tradição espiritual. Aliás, é impossível para nós seres humanos comuns pe(n)sarmos as almas dos outros (nem sequer a nossa) e conhecer o autêntico segredo e destino que reside no coração de cada um. Fica a impressão de uma alma luminosa, e a interrogação irresolvida sobre à missão dela em relação à sua época e à (sua) comunidade celeste e terrestre.
Voltando às minhas memórias, a primeira vez que troquei umas palavras com Eduardo Lourenço foi em 2011, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, durante um colóquio sobre Nietzsche, Freud e Pessoa. Ele precisava de alguém que o ajudasse a subir as escadas para chegar ao Anfiteatro III, disponibilizei-me a fazê-lo. A subida dos degraus foi uma experiência penosa para ele, já velho e com algum problema a andar. Elevador não havia, ele esteve quase para desistir. Queixou-se quase sussurrando, ao subir devagar e com muito cansaço: «Esta é uma montanha!». Eu não tinha responsabilidade sobre o que estava a acontecer, ajudei-o com toda a dignidade que tinha, mas senti um pouco de vergonha por ele ter de passar por aquilo.
A última vez que o vi foi na Biblioteca Nacional de Portugal, durante um outro colóquio, já não me lembro qual, deve ter sido entre 2016 e 2018. Naquela ocasião ofereci-lhe a minha tese de doutoramento sobre Fernando Pessoa e o Islão. Lembro-me de ele ter olhado com uma certa atenção ao índice e de ter comentado acerca do facto que a dissertação parecia tratar do tema de forma completa e exaustiva: «O assunto [da tese] está arrumado!», disse-me. Foi uma maneira gentil para me agradecer e dar coragem. A sábia gentileza para com os jovens era sem dúvida uma atitude que ele cultivava e praticava.
Outra breve ocasião de encontro teve lugar em 2016, quando eu tinha coorganizado um colóquio sobre Agostinho da Silva na FLUL, sob a direção de Paulo Borges. Eduardo Lourenço foi o orador que encerrou os trabalhos, com o Anfiteatro III cheio (nunca o vi tão cheio como naquele colóquio, e repare-se que nos mesmos anos a FCT começava a fechar as portas a muitas das investigações sobre o pensamento português). Lembro-me da maneira como finalizou a sua comunicação, com a palavra «Amor». Foi tocante. Depois do encerramento, já era hora do jantar, fui acompanhá-lo a casa no carro de Pedro Vistas, que conduzia. Trocámos umas palavras, naquele quarto de hora até à zona entre Picoas e São Sebastião, sobre Islão, Pessoa e a filosofia. Ele manifestou uma certa preocupação quando nos disse que em França, país onde tinha vivido, há dificuldade em lidar com a questão do Islão.
Além destes breves encontros, a ocasião em que pude propriamente privar com ele foi outra, e tinha ocorrido em 2014, quando tive a oportunidade e o privilégio de conversar privadamente com ele durante cerca de uma hora e meia no contexto da Fundação Calouste Gulbenkian, da qual ele era administrador e eu era bolseiro, naquela altura. Estava eu a preparar a minha tese de doutoramento sobre Fernando Pessoa e o Islão, e Eduardo Lourenço aceitou dar-me algumas orientações, logo recebeu-me no seu gabinete, na Fundação, para atender a algumas questões minhas sobre Islão, Portugal e Pessoa. As suas respostas muito me ajudaram na elaboração da tese, e guardo uma ótima memória da sua gentileza, da sua profundeza, do seu brilho.
Lembro-me bem de ele me ter referido acreditar que o mais importante dado histórico desde a Segunda Guerra Mundial até aos inícios do século XXI fosse a reaparição do Islão como foco da atualidade e do debate civilizacional e religioso-espiritual no Ocidente, depois de o Islão ter sido marginalizado, neste debate, pelo próprio Ocidente. Aliás, ele achava que Ocidente e civilização islâmica tivessem vivido como «sonâmbulos vizinhos, reciprocamente» durante bastante tempo, e que o Ocidente tentasse de alguma forma encher o vazio deixado pela chamada “morte de Deus” através do Islão e do Oriente.
Também me lembro vividamente de uma memória da infância que ele me transmitiu durante aquela conversa. Trata-se de uma recordação rural da freguesia em que ele tinha nascido na Beira Alta, São Pedro de Rio Seco. Uma zona de terra seca, na qual, conforme Eduardo Lourenço me disse, antes de aparecer a nora na segunda metade do século XX, utilizava-se, para tirar água do solo, uma ferramenta mais simples, a picota, acerca da qual Eduardo Lourenço tinha ouvido dizer, durante a infância, que tinha origem árabe. Graças a este relato da infância, em que ele expressava uma qualquer ou mínima ligação ancestral ao legado popular do al-Andalus, senti-me convidado para o espaço interior e íntimo do homem. Senti-me acolhido, e continuo a ficar grato pela maneira como ele me acolheu naquele dia de maio.
Falou-me com generosidade e agudez, de Camões e do Império Otomano, de Alcácer-Quibir e do Oceano Índico, de Pessoa e do Quinto Império, de Antero de Quental e Oliveira Martins, das Cruzadas e do colonialismo, do 25 de abril e do Sebastianismo, de Agostinho da Silva e do Budismo, de Catolicismo e Islão, de Oriente e Ocidente. Tudo o que disse, de alguma forma, contribuiu para o meu pensar o Islão e(m) Portugal e incentivou-me a continuar a pensar nestas questões. Lembro-me, a este respeito, da última palavra com que se despediu de mim aquando do fim daquele nosso convívio. Uma palavra séria e alegre, como ele era. Uma palavra que vale sempre a pena continuar a deixar vibrar no interior:
«Coragem!»
Origem da imagem à direita: Agência Lusa