No dia em que a saudosa professora Filomena Barros (1958-2021) faria anos, publico aqui uma versão ligeiramente revista do depoimento de homenagem que li no contexto do encontro Filomena Barros – In Memoriam, decorrido no dia 4 de junho de 2022 do Teatro Garcia de Resende em Évora, organizado pela Universidade de Évora em colaboração com a Universidade Lusófona.
BismiLlāh al-Raḥmāni al-Raḥīm
Bom dia a todos e todas,
Muito obrigado à organização do encontro Filomena Barros – In Memoriam, em particular à professora Susana Gómez Martínez da Universidade de Évora, pelo convite. Trago igualmente as saudações assim como o agradecimento de toda a Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.
Pretendo dizer algumas palavras, enquanto testemunho e como memória pessoal acerca da minha amizade e da minha colaboração com a querida, saudosa e estimada professora Filomena Barros, para assim a recordar e homenagear depois da sua inesperada partida, ocorrida a 8 de março de 2021.
No verão de 2016, o Alto Comissariado para as Migrações realizou um guia didático sobre as tradições religiosas praticadas em Portugal no século XXI, intitulado Cosmovisões Religiões e Espirituais: guia didático das tradições presentes em Portugal, coordenado pelo professor Paulo Mendes Pinto. O projeto, realizado em colaboração com a Universidade Lusófona, incluía entradas sobre as diferentes vertentes do Islão praticadas no país.
O pedido para se realizar os textos sobre Islão foi dirigido à Filomena Barros e a mim, para os escrevermos juntos. Ainda não nos conhecíamos pessoalmente, mas levámos a bom porto o trabalho num clima de colaboração respeitoso e construtivo. Aquele guia didático tem circulado, ao longo dos anos, nas escolas, nas creches, nos agrupamentos escolares e em várias outras instituições e comunidades de Portugal, desejavelmente ajudando a desconstruir preconceitos e facilitando a convivência pacífica assim como a integração de migrantes e minorias religiosas, tal como vários testemunhos públicos e privados nos têm demonstrado entretanto.




É para mim motivo de grande satisfação, e uma verdadeira honra, ter coassinado aqueles escritos com a Filomena, uma grande mulher e uma grande cientista, cuja preocupação com a história e a dignidade das minorias animou-a constantemente, em prol de uma humanidade e uma sociedade mais sábias e justas. O facto de os nossos escritos terem circulado, não apenas na academia, mas sobretudo na sociedade civil, constitui para mim outro motivo de alegria, dado o valor que atribuo ao aspeto comunitário do trabalho intelectual. A professora Filomena Barros, neste sentido, permanece enquanto exemplo de como a investigação tenha de valorizar sempre a sua imprescindível dimensão comunitária, sem fechar-se em torres de marfim.
Foi, aquela primeira colaboração, o início de um relacionamento académico e humano que dentro em breve se tornou numa amizade. Como sabe quem conheceu a Filomena, era quase impossível não instaurar com ela um relacionamento cordial e empático. A sua simpatia e alegria eram contagiosas, e desde o primeiro encontro, decorrido naquele mesmo período de 2016-2017 na Universidade Lusófona, logo nos sentimos muito à vontade um com o outro.
Naqueles tempos, a própria Universidade Lusófona tinha encontrado em mim a pessoa para reelaborar um programa de investigação, docência e atividades sobre o Islão, sobretudo sobre a receção e a representação da cultura islâmica em Portugal. Eu tinha acabado o meu doutoramento há cerca de dois anos, enquanto a Filomena tinha ajudado até então, durante alguns anos, a Área de Ciência das Religiões, colaborando enquanto docente da cadeira sobre Islão no mestrado em Ciência das Religiões da própria Universidade Lusófona, embora a sua casa académica fosse a Universidade de Évora.
A transição entre ela e eu na docência de dita cadeira foi harmoniosa e a Filomena expressou-me pessoalmente o seu favor relativamente à mesma transição, demonstrando-me desde logo uma estima e uma consideração, humanas e científicas, que para mim, enquanto jovem investigador, foram fundamentais para começar a aventura da docência com a maior motivação e confiança, e sabendo que poderia sempre contar com a ajuda dela para quaisquer dúvidas e ajudas.
E assim fiz, ao longo dos anos: cada vez que precisava de informações, aconselhamentos, orientação científica sobre a história dos muçulmanos em Portugal, ligava-lhe, escrevia-lhe, a qualquer hora do dia (e da noite, por vezes), encontrando sempre nela, não só o rigor científico pelo qual é justamente reconhecida, mas também uma generosidade, uma disponibilidade e uma afabilidade que faziam daquelas conversas ocasiões muito gratas do ponto de vista pessoal, para além de científico.
Outro momento que relembro com prazer, na colaboração científica com ela, foi o convite que ela me dirigiu para ser revisor paritário em 2018 na Hamsa – Revista de Estudos Islâmicos e Judaicos, por ela codirigida no CIDEHUS da Universidade de Évora. Mais uma vez, tratava-se para mim de uma entre as primeiras experiências enquanto revisor paritário numa revista científica, e a sua estima e confiança contribuíram, novamente, para o desenvolvimento das minhas competências académicas.
A Filomena ia-se assim tornando, em algumas vertentes do meu percurso científico, numa figura de mentora para mim. A colaboração editorial entretanto continuava e, com base numa participação dela enquanto oradora no Seminário Permanente de Estudos Islâmicos que coordeno na Lusófona, em 2020 decidimos produzir alguns materiais didáticos sobre Muçulmanos em Portugal na Idade Média, baseados no trabalho científico dela. Materiais livremente acessíveis, que têm circulado, em Portugal e no espaço lusófono, para utilidade, não só do público universitário, mas também do público em geral e das próprias comunidades islâmicas lusófonas – inclusivamente nos jovens –, que têm vindo a beneficiar do trabalho científico de Filomena Barros para melhor entenderem a história do Islão e dos muçulmanos em Portugal.
Elemento, este, de grande valor e destaque, tal como foi confirmado, poucos dias após o falecimento da Filomena, pelo próprio imã da Mesquita Central de Lisboa, Shaykh David Munir, num primeiro momento de homenagem pública e académica à Filomena, que a Área de Ciência das Religiões realizou online, em plena pandemia, no contexto dos Clubes Terra Justa, poucas horas após termos sido todos surpreendidos pela imprevista notícia da partida da Filomena.




Filomena Barros era, como é universalmente sabido, uma investigadora rigorosa e um ponto de referência internacional na área dos estudos sobre a história das comunidades islâmicas em Portugal e na Península Ibérica. Ao mesmo tempo, encarava uma alta missão civil na desconstrução dos discursos de ódio e de discriminação perante o Islão. Ter colaborado com ela em projetos, como os que referi, de ação científica e cultural com uma projeção cívica e comunitária, constitui uma grande satisfação no meu percurso humano e cultural.
Igualmente importante, ou mais até do que a colaboração, foi a amizade que ao longo dos anos se foi construindo e fortalecendo entre nós. O momento em que amadureceu foi a participação de ambos no seminário Islam and Judaism in the cultural memory of Spain and Portugal, II: Re-Visioning Iberia, no King’s College de Londres, coorganizado pelo estimado colega e grande amigo comum AbdoolKarim Vakil, em 2019. Naqueles dois dias em Londres, hospedados no mesmo hotel, a Filomena e eu convivemos e aprofundámos o nosso conhecimento recíproco, abrindo-nos para um relacionamento humano cada vez mais próximo e autêntico.
Aconteceu de falarmos de assuntos privados, nomeadamente das dificuldades da vida. Fiquei, então, ainda mais tocado pela sua generosidade, a sua compaixão e o seu otimismo, apesar das provações que a existência, como sabe quem privou com ela, não lhe poupou. Pouquíssimas semanas antes da sua despedida, lembro-me de lhe ter ligado para lhe pedir aconselhamento relativamente a um desafio que eu estava a enfrentar. Encontrei nela a voz amiga e sábia, que me transmitia o impulso empático para eu ultrapassar aquele momento da forma melhor.


(21 fev. ’19; foto de AbdoolKarim Vakil)

(21 fev. ’19; foto de AbdoolKarim Vakil)
Finalmente, reincidindo e relacionando-se com tudo o acima referido, quero relembrar e agradecer à professora Filomena Barros por tudo o que ela fez, com o seu trabalho científico, sem ideologismos nem facilitismos, para os muçulmanos que vivem e trabalham em Portugal, e que enfrentam todos os dias os perigos – muitas vezes ocultos ou ocultados – da islamofobia e do preconceito, atitudes daninhas que ela contribuiu para criticar, desconstruir e – se Deus quiser – ultrapassar, por ter mostrado como os muçulmanos são uma parte integrante e importante da história de Portugal assim como da comunidade dos portugueses.
Por todas estas razões, a perda dela no contexto dos Estudos Árabes e Islâmicos em Portugal, e da comunidade portuguesa, é inestimável. A nível pessoal, a sua despedida continua difícil de ser elaborada, e tudo o que posso fazer é cultivar a boa recordação e confiar na Misericórdia Divina. Algo que nos consola é que o trabalho científico dela, tão sólido, rigoroso e relevante, continua enquanto peça fundamental no contexto lusitano e internacional.
Que o legado dela continue a frutificar da forma mais propícia, e que sejamos capazes de estar à altura dele.
Muito obrigado pela atenção.
Fabrizio Boscaglia
4 de junho de 2022, Teatro Garcia de Resende, Salão Nobre – Évora
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