Veneza e Florença: périplo estético e islamo-cristão em 15 obras de arte

Pode parecer estranho que um italiano visite Veneza e Florença pela primeira vez passados os quarenta anos de idade, mas a verdade é que a cidade onde eu nasci, Turim, não se encontra perto – física nem animicamente – destas duas capitais da Renascença e da arte. Em 2023 as condições foram propícias para preencher esta lacuna, através de duas viagens marcantes e epifânicas. Os objetivos foram comuns a ambas: mergulhar na arte do Renascimento (e na arte em geral) buscando nela pérolas sapienciais, além de estéticas; captar sinais de ligação e cruzamento entre Europa e Islão, Cristianismo e Islão, sobretudo na arte e mesmo que fossem ligeiros ou indiretos.

As seguintes notas, pois, refletem os dois intuitos que animaram as viagens, e são baseadas em apontamentos de viajante. Assim, eis um périplo entre Veneza e Florença, através de quinze obras de arte, escolhidas entre as que mais me tocaram a nível estético. Trata-se, por um lado, de uma contemplação especulativa do belo, tropeçando em imagens de sabedoria, através de notas e reflexões abertas, em devir e não sistemáticas. Ao mesmo tempo, no caso de algumas das obras selecionadas – nem todas elas -, trata-se de uma ocasião para entrever encontros (e desencontros) entre civilização cristã e civilização islâmica no contexto da Renascença italiana. Em Nome do Misericordioso…

1. Tintoretto na Escola Grande de São Roque (Veneza)


O edifício histórico da Escola Grande de S. Roque, em Veneza, hospeda uma impressionante e monumental concentração de obras-primas do pintor veneziano Tintoretto, um dos nomes maiores do Renascimento e do Maneirismo venezianos. Entre as majestosas telas (teleri) que adornam as paredes da Sala Terrena, quero destacar a que representa o episódio da Anunciação (1582-87), ou seja, a comunicação, pelo anjo Gabriel a Maria, da milagrosa conceção de Jesus (a Paz esteja sobre eles). Trata-se de um tópico evangélico (cf. Mt 1,18-25), um clássico da arte cristã, que Tintoretto reinterpreta de forma invulgar, ao acrescentar muitas figuras à tradicional dupla sagrada. Além disso, numa ótica islamo-cristã, oportuno será relembrar que a chamada «Anunciação» é também um assunto islâmico, referido no Alcorão (19, 16-21), dado o Islão pregar a conceção milagrosa de Jesus em termos muito semelhantes aos do Cristianismo, e sendo Jesus um importante profeta de Deus (louvado seja Ele) no próprio Islão. Veneza foi, em época renascentista, cidade de encontros culturais e comerciais entre Europa cristã e civilização islâmica. A «Anunciação», sendo um tema revisitado na própria iconografia islâmica medieval, é uma imagem adequada para introduzir este diálogo, e assim começar o nosso périplo.

Origem da imagem: http://www.scuolagrandesanrocco.org/home/tintoretto/sala-terrena

2-3. Os persas na corte do Doge (Veneza)


Ao mesmo tempo que Veneza competia e combatia contra o Império Otomano, a Sereníssima República buscava, contra os próprios turcos, a aliança de outro império muçulmano, nomeadamente o dos Safávidas, persas, muçulmanos xiitas, e do seu soberano Shāh ʿAbbās “o Grande”. Em 1603, este enviou uma embaixada a Veneza, levando dádivas para a corte veneziana liderada pelo Doge Marino Grimani, conforme testemunhado pela pintura de Gabriele Caliari, O Doge Marino Grimani recebe presentes dos embaixadores persas (1603).

Entre as prendas levadas pelos muçulmanos safávidas, havia um veludo persa coevo, com uma representação islâmica de Jesus e Maria. Estas peças encontram-se hoje, a primeira no Palácio Ducal, que foi a sede dos Doges (chefes eleitos de Veneza) ao longo dos séculos, e a segunda no Palácio Mocenigo.

Origem das imagens: Caliari, Il doge Marino Grimani riceve i doni dagli Ambasciatori persiani / Frammento di tessuto di Persia https://altritaliani.net/i-doni-della-persia-safavide-alla-serenissima-in-mostra-a-venezia/

4-5. Bellini e Tiziano em Santa Maria Gloriosa dei Frari (Veneza)


É inegável que as pinturas destes dois gigantes do Renascimento veneziano – Giovanni Bellini e o seu aluno Tiziano –, gerem um notável impacto em quem as observe. Em particular, as obras-primas expostas na Basílica de Santa Maria Gloriosa dei Frari. Impressionante e pervasiva é a atmosfera de tensão mística nestas duas pinturas. Ainda parcialmente ligada aos cânones estéticos medievais em Bellini, no notável Tríptico dei Frari (1488), enquanto Tiziano elabora na célebre Assunção da Virgem (Assunta, c. 1518) as novas diretrizes do Renascimento, de forma original, num diálogo patente e entre pares com Michelangelo e Raffaello.

Estamos muito longe da iconografia islâmica, na obra de Tiziano, basta pensar na representação antropomórfica de Deus como velho com barba (o bíblico «Ancião dos Dias», cf. Dn, 7, 9), que seria teologicamente impossível, errada e proibida no Islão. Aliás, mesmo em contexto cristão, em que é permitida a representação antropomórfica do divino, a figura do “velho com barba” associada a Deus é objeto de divergências entre Igreja Ortodoxa ou Oriental (que não contempla a representação corpórea de Deus enquanto “Pai”) e Igreja Católica Romana. Veneza, talvez a mais “oriental” das cidades europeias, parece aqui afirmar a sua indefessa ocidentalidade latina.

Origem das imagens: Bellini, Trittico dei Frari https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/64/Giovanni_bellini%2C_Trittico_dei_Frari%2C_1488%2C_01.JPG / Tiziano, Assunta https://it.wikipedia.org/wiki/Assunta_%28Tiziano%29#/media/File:Tiziani,_assunta_01.jpg

6-7. Abraão, Agar e Ismael segundo Tiepolo (Veneza)    


Regressando à Escola Grande de São Roque, consideremos, além de Tintoretto, duas obras de um dos mestres do rococó veneziano, o pintor Giambattista Tiepolo: Agar e Ismael (1733) e Abraão e os anjos (1743). Estas pinturas representam, numa ótica estético-cultural da Europa católica, figuras e episódios que, em boa verdade, são comuns à Torá, à Bíblia e ao Alcorão (cf. Gn, 21, 8-21; Alcorão, 2, 127; 14, 37).

Aliás, tanto o profeta Abraão, como a sua segunda esposa Agar e ainda o filho deles Ismael – outro profeta segundo o Islão – são personalidades diretamente ligadas, segundo a religião islâmica, à fundação da Caaba, o lugar de culto mais importante para os muçulmanos, em Meca, cidade onde nasceu o profeta Muḥammad (a Paz esteja sobre eles). O legado das três culturas da tradição abraâmica é patente em Veneza, cidade “cristã” com uma profunda influência estética “oriental” vinda das terras do Islão, e onde ainda existe o antigo bairro judeu, no sestriere chamado Cannaregio.

Origem das imagens: Tiepolo, Agar e Ismael / Abramo e gli angeli http://www.scuolagrandesanrocco.org/home/non-solo-tintoretto/tiepolo

8. A casa do turco em Veneza: Fondaco dei Turchi (Veneza)


O palácio nobre chamado Fondaco dei Turchi (1730) foi, entre os séculos XVII e XIX, utilizado como residência onde se alojavam os mercadores turcos em Veneza. Quem sabe se entre eles não se encontravam também alguns sufis que, nas noites passadas na lagoa, sentados ou de pé ou deitados de lado (cf. Alcorão, 3, 191) se dedicavam à recordação (dhikr) de Deus e procuravam intimidade com Ele, pedindo misericórdia para os povos do Oriente e do Ocidente. A República de Veneza e o Império Otomano, apesar de inimigos em várias fases geopolíticas nos séculos XVI-XVIII (como, entre outras, a Batalha de Lepanto em 1571), mantiveram ao mesmo tempo relações comerciais e culturais importantes. Podemos imaginar que neste palácio houvesse inclusivamente um espaço dedicado à função de mesquita. «Veneza me relembra instintivamente Istanbul», cantava o músico italiano Franco Battiato em 1980…

Origem da imagem: https://msn.visitmuve.it/it/il-museo/la-sede-e-la-storia/cenni-architettonici/

9-10. Os anjos de Leonardo da Vinci (Florença)


A mediação entre céu e terra, entre visível e invisível, entre Divino e humano, foi uma verdadeira obsessão para Leonardo da Vinci, o génio que possivelmente deu o maior marco intelectual ao Renascimento (e que, segundo alguns estudiosos, era supostamente filho de uma escrava vinda do Oriente Próximo, Caterina, amante do notário florentino Piero da Vinci). Os anjos representam uma modalidade da referida mediação entre dimensão física e metafísica, esta função deles sendo, aliás, mais um elemento comum ao Cristianismo e ao Islão. Diga-se que os anjos de Leonardo são algo de incomparável na história da arte figurativa.

Na Galeria dos Uffizi, em Florença, encontram-se dois deles, em obras juvenis realizadas por Leonardo nesta cidade: um no Batismo de Cristo (anjo da esquerda, na pintura realizada em colaboração com Verrocchio, c. 1470-5); outro numa célebre Anunciação (c. 1472). Antecipações da suavidade e da intangibilidade “celestiais” dos anjos que o próprio Leonardo pintará, entre 1483 e 1499, na Virgem das Rochas (tanto na versão exposta no Louvre, como na da National Gallery de Londres). Nesta altura, Leonardo, já há anos, costumava escrever da direita para a esquerda, como os árabes…

Oportuno será também referir o interesse que uma parte do chamado mundo arábico-islâmico tem tido por Leonardo, já que que uma obra atribuída ao autor – a pintura Salvator Mundi (c. 1500) que representa Jesus – foi adquirida pelo governo dos Emirados Árabes Unidos, em 2017. Tratou-se apenas de uma operação diplomático-cultural ou será algo mais revelador de um interesse estético-teológico pelas instâncias do Renascimento, por parte de segmentos da comunidade e da intelectualidade islâmicas?

Origem das imagens: Leonardo, Annunciazione / Leonardo e Verrocchio, Battesimo di Cristo (pormenor) https://www.uffizi.it/opere

11-12. A pintura-escultura de Michelangelo (Florença)


Ninguém como Michelangelo introduziu na arte europeia e cristã a plasticidade dos corpos em matéria de iconografia religiosa, traduzindo para a pintura as potencialidades da arte da escultura, na qual este génio do Renascimento era prodigioso. Estamos aqui, possivelmente, num dos pontos mais distantes da estética islâmica, que rejeita a representação em três dimensões das figuras antropomórficas. Estamos, alías, perante um dos elementos mais críticos do Renascimento, que se reflete – segundo uma interpretação corrente na história da cultura – em vários dos artistas aqui considerados: o suposto distanciamento do ser humano, não só da religião oficial, mas também da própria autoridade divina, através da afirmação de instâncias imanentistas, cada vez mais desvinculadas da simbologia e da cosmovisão tradicionais da arte sagrada. Contudo, fora de qualquer consideração teológica sobre as opções estéticas de Michelangelo, é inegável que obras como a pintura Tondo Doni (1504-06), na Galeria dos Uffizi, assim como a célebre escultura David (1501-04), na Galeria da Academia, são surpreendentes pela intensidade que transmitem.

Uma das possíveis mensagens associadas ao David – outro profeta comum a Islão e Cristianismo, a Paz esteja com ele – pode estar associada à nudez do sujeito representado. Aqui é como se Michelangelo estivesse a dizer que quem está com Deus já tem tudo o que lhe serve – e nível espiritual e não só – para ganhar contra o opressor, mesmo que aparentemente não possua nenhuma proteção exterior contra ele, e mesmo que o adversário seja maior e mais equipado (Golias, no episódio bíblico, cf. 1Sam, 17; Ğālūt no Alcorão, 2, 249-261).

Origem das imagens: Michelangelo, Tondo Doni https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e1/Tondo_Doni%2C_por_Miguel_%C3%81ngel.jpg / David https://www.galleriaaccademiafirenze.it/opere/david-michelangelo/

13. A síntese de Raffaello (Florença)


Talvez se trate do maior pintor de todos os tempos, pelo menos da civilização ocidental. As Nossas Senhoras de Raffaello são simplesmente paradigmas estéticos de referências desde o século XVI até hoje. A suavidade espiritualista de Leonardo aqui se funde magistralmente com a plasticidade corpórea de Michelangelo, ambas se sublimando. Nos primeiros anos do século XVI, os três génios maiores do Renascimento italiano estiveram todos, ao mesmo tempo, em Florença, e em alguns momentos se cruzaram e se influenciaram reciprocamente. O mais jovem entre eles, Raffaello, talvez tenha conseguido realizar a síntese mais excelente, fixando os cânones da Renascença, logo do Maneirismo e da estética ocidental, como possivelmente ninguém fez, antes ou depois dele. Aqui, veja-se a Madonna do Pintassilgo (1506), hoje na Galeria dos Uffizi, conotada pela doçura que relaciona as figuras de Maria, Jesus e João “Batista” (mais um profeta comum a Cristianismo e Islão, a Paz esteja sobre ele).

Origem da imagem: https://it.wikipedia.org/wiki/Madonna_del_Cardellino#/media/File:Madonna_del_cardellino_dopo_il_restauro.jpg

14. A Primavera de Botticelli é hipnótica (Florença)


A reinterpretação do legado greco-romano à luz do monoteísmo, procurando uma continuidade sapiencial entre eles, é um fator decisivo das civilizações mediterrânicas na transição entre as chamadas Idade Média e Renascença. Se o Islão se concentrou sobretudo na receção e transmissão da filosofia e das ciências gregas – com efeito, Raffaello homenageou o filósofo islâmico Averróis no célebre fresco A Escola de Atenas (1511) no Vaticano em Roma –, a arte cristã se dedicou com especial atenção à releitura dos mitos clássicos, procurando reinterpretá-los e integrá-los, a nível estético-sapiencial, à luz da mensagem cristã. Neste sentido, a Primavera de Botticelli (1477–82) é uma celebração dos atributos divinos de Vida e de Beleza, segundo a iconologia da mitologia clássica, revista pelo olhar da civilização cristã renascentista. Fora de qualquer consideração teológica e confessional – a presença de “divindades” pagãs como Mercúrio mantém-se controversa em contexto abraâmico -, a pintura é de uma intensidade e vivacidade ímpares, deveras impressionante na fascinação que dela promana, cativando o observador como nenhuma que já vi até à data.

Origem da imagem: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Primavera_%28Botticelli%29#/media/Ficheiro:Botticelli-primavera.jpg

15. A Medusa de Caravaggio é o ego (Florença)


Obra célebre e icónica de Caravaggio, a Cabeça de Medusa (1598), pintada num escudo e exposta na Galeria dos Uffizi, representa o êxito da decapitação do monstro mitológico pela mão do herói Perseu. Até ao século XVIII, foi exposta numa galeria de armas, juntamente com uma armadura persa. Quando me encontrei perante esta face terrível, brutalmente chocada e fatalmente vencida, não pude evitar de pensar no que ela representaria para mim, fora da fascinação-repulsão estética e mais epidérmica que a obra suscita. Ela representa a meu ver o ego, com as suas múltiplas tentações e perversões, morto pelas mãos do espírito. Cortar a cabeça da Medusa é vencer o ego, derrotar as tendências nefastas em nós, particularmente os pensamentos obscuros e automáticos que vêm do subconsciente. Algo que teria a ver com aquele «morrer antes de morrer» do qual falou o profeta Muḥammad (a Paz esteja com ele). Assim, a mim, esta pintura relembra – numa interpretação livre e especulativa – uma figura da morte iniciática pregada pelos sábios sufis, êxito ou passagem decisiva de todo o caminho espiritual bem sucedido.

Origem da imagem: https://it.wikipedia.org/wiki/Scudo_con_testa_di_Medusa#/media/File:Medusa_by_Caravaggio.jpg

Périplo (in)concluso

Assim termina um périplo que seria interminável. As obras-primas de arte em Veneza e Florença são, pois, inúmeras, e custou-me deixar fora pinturas como a Madonna dal collo lungo de Parmigianino (c. 1540) ou Giuditta decapita Oloferne de Artemisia Gentileschi (1620), entre outras. Trata-se apenas, aqui, de percorrer um breve segmento de um caminho pela arte, mais amplo e em devir, a ser percorrido por alguém que, em matéria de história arte, não passa de um diletante e um amador.

No que respeita ao chamado diálogo islamo-cristão, algumas das obras e das ideias aqui consideradas indicam uma vez mais que existem significativos encontros, cruzamentos e temas comuns às duas revelações e civilizações, coexistindo com diferenças – por vezes abismais – a nível teológico e estético, particularmente no período designado como Renascença. As diferenças devem ser afirmadas e salvaguardadas, e não se deve negar que houve períodos de intensa confrontação geopolítica entre as civilizações cristã e islâmica, nos séculos abordados.

Sobretudo Veneza foi um dos atores desta dinâmica e a narrativa da Batalha de Lepanto foi cultivada por artistas “venezianos”, como Vicentino (1605) e os já referidos Tintoretto e Tiziano, entre outros. Contudo, aprendi na Península Ibérica que, mesmo quando duas civilizações se confrontam e combatem, elas também dialogam e se influenciam reciprocamente, numa ambiguidade complexa mas fecunda de ocasiões para refletir.

Com efeito, se oportunamente quisermos percorrer a via da reconciliação entre as comunidades e culturas enraizadas na revelação do Deus de Abraão – o Deus Uno, Único e Misericordioso -, não será tempo perdido o que dedicarmos a entrever e descobrir analogias, correspondências e acima de tudo possibilidades de (re)conhecimento recíproco. Em tudo, pois, podemos descobrir e reter sabedoria, especialmente na arte – na sua claridade e no seu mistério -, se tivermos o justo cuidado e se for verdade que, conforme é atribuído às palavras de Muḥammad, «Deus é Belo e ama a Beleza».


E Deus sabe mais, e o sucesso vem Dele.


Lisboa, 26 de janeiro de 2024

Fabrizio Boscaglia

Origem da imagem: Andrea Vicentino, La Battaglia di Lepanto (1605) https://www.visitmuve.it/it/galleria-delle-opere/andrea-vicentino-la-battaglia-di-lepanto/