A poeta portuguesa e minha amiga Risoleta C. Pinto Pedro dedica, no seu blogue, um texto autógrafo ao meu livro de poemas em italiano, Il ritorno dell’anima (Ladolfi, 2021). Muito agradeço à Risoleta pelas suas palavras e, com a autorização dela, reproduzo o texto integral aqui. O livro encontra-se, para além de no Amazon, na Livraria Poesia Incompleta, em Lisboa.
Entre Turim e Lisboa, o voo dos versos
(A propósito do livro de poemas Il Ritorno dell’Anima, de Fabrizio Boscaglia)
Não conheço muitos poetas italianos, nomeadamente contemporâneos, mas também aqui, quantidade não é equivalente a qualidade.
A minha relação com Itália, não sendo muito visível, é intensa, a começar com a admiração pela língua e pela poesia. A língua que, aliás, já por si é quase um poema, como afirma Cortesão, com muita exactidão, em relação à língua portuguesa. E como confirmei quando, na Faculdade, tive aulas de Italiano durante algum tempo. Depois, em visita a Roma e a Florença, foi como andar mergulhada em música. Corrigi, então, o meu pensar: o português é um poema, o italiano é uma cantata. Da infância conheço o espanhol, que sempre me pareceu uma comédia dramática em tom trágico. Não menos encantadora, ou talvez com mais precisão, arrebatadora.
Mas voltemos aos italianos, que o propósito é claro. Dante é poeta muito amado por um dos meus mais amados filósofos, António Telmo, mas chegou-me, a primeira vez, pela mão de Camões, outro que a idade adulta me trouxe ainda mais enriquecido com o olhar/leitura de António Telmo. Foi também Camões (e seus fratelli do renascimento) o meu passaporte para Petrarca e Dante. Verifico, curiosamente que qualquer um destes, Petrarca, Dante, Camões, todos fiéis do amor, se reacenderam, se tal era possível, em esplendor, após o conhecimento do trabalho de desencriptação de Telmo.
De alguns poetas italianos que até hoje fui “encontrando” retive versos, como de Bocaccio («Deh, signor mio, deh fammelo sperare, si ch’io conforti l’anima smarrita»); do anti-fascista Pavese («Tu non sai le colline dove si è sparso il sangue»); do genial e trágico Pasolini (terrível, “A Balada das Mães”); e mais recentemente, do pacifista e multifacetado Lanza del Vasto (“Conquiste di Vento”).
Mas outros me tocaram profundamente, e neles, tais os antigos já citados, mergulhei, como em Ungaretti, de quem recordo constantemente o poema mais curto e mais belo que conheço (“M’íllumino d’immenso!”), ou Leopardi («Sempre caro mi fu quest’ermo colle»).
De Dante reli, recentemente, La Vita Nuova, para um ensaio que não cheguei (ainda) a escrever, e de Petrarca fiquei em êxtase e espanto quando, há anos largos, comparando sonetos, encontrei passagens comuns com Camões, quase literais. Não me conformei com a tese do plágio camoniano, e fiz bem. Para além da mesma estética, percebi mais tarde, digo, recentemente, que comungavam do mesmo código, do mesmo cânone iniciático-amoroso, que rezavam a mesma oração.
Poema-oração poderia ser a categoria atribuída ao primeiro livro de poesia de Fabrizio Boscaglia, ou pelo menos a alguns dos poemas. O livro, belíssimo, de uma delicadeza elegante no seu corpo material, tem por título Il Ritorno dell’Anima, e foi acabado de publicar pela editora italiana Giuliano Ladolfi Editore. Tive o privilégio de o receber há dias das mãos do autor, meu amigo e vizinho; temos, também, amigas comuns, entre as quais duas belíssimas árvores. Fabrizio é natural da cidade de Torino, cidade poética, a mesma para onde Pavese foi viver a partir de tenra idade. No mesmo dia li alguns versos ao menino que me acompanhava e comigo foi recebedor do livro. Um ano e alguns meses de vida são o que basta para acolher as palavras como sendo as criadoras primeiras do mundo.
Belo é também o conteúdo do livro, e dou graças por ter decidido, há algum tempo, voltar ao estudo do italiano, o que me ajuda agora a mergulhar nos versos com não excessiva dificuldade. Nestes poemas ressoam os passos de Fabrizio em Portugal e pela cidade de Lisboa (“Tejo”: «Panno di luce azzurra/ su cui stendo lo sguardo»); pelas recentes vivências (como “Confinamento”: «L’orologio s’è fermato,/ il piano s’è inclinato,/ le foglie respirano pesante/ sulla strada vuota/ del nostro esilio»); mas também a inspiração sufi, nomeadamente no magnífico pequeno grande poema com que fecha este ciclo: («Maestro,/ dai tuoi occhi/ un invito/ cresce»).
Sete são as partes em que se organiza, e alguns poemas parecem, pela estrutura e criação de sentidos, aparentados ao hai-kai, embora com alguma distância, pelo menor hermetismo; aliás, a palavra e seu sentido é um tema quase transversal: («Coprirsi di parole,/ ma nudi di verità,/ poveri di altrove), ou: («Pezzi di parole/ rotte dal tempo/ tremano dentro»).
As palavras desta poesia são um caminho entre o que o olhar vê e a alma sente. Na síntese, nasce o poema.
Infelizmente, não é uma edição bilingue, no entanto convido o leitor amante de poesia a procurar e a entrar nestes poemas e a lê-los ousadamente, como se desde pequenino o italiano fosse a sua língua. Ou como uma criança face à novidade da arte das palavras. Não é só o poema que nos inunda de sobressalto, também um leitor que penetre poeticamente numa obra pode alvoroçar os versos e desse modo assistir à sua abertura, como uma flor de mútuo espanto.
Risoleta C. Pinto Pedro
13 de Julho de 2021
Origem do texto: https://aluzdascasas.blogspot.com/2021/07/entre-turim-e-lisboa-o-voo-dos-versos.html