Uma das coisas mais bonitas, ao passarmos momentos de convívio com escritores das gerações anteriores, é ouvi-los contar aventuras, encontros e histórias do passado. Sobretudo quando as histórias envolvem outros intelectuais e artistas. Assim aconteceu hoje, em Óbidos, onde me encontrava com os amigos e poetas Maria João Cantinho e Adalberto Alves, e este começou a narrar.

Fomos àquela linda vila do Oeste para apresentarmos o nosso livro recém-saído Adalberto Alves: 40 anos de vida literária (Edições Universitárias Lusófonas, CIL) no contexto do festival Latitudes. Estávamos a almoçar. Connosco, sentados a mesa, havia ainda a esposa de Adalberto Alves, a minha esposa e o meu filho.
Frente a um suculento prato e na alegria do convívio, no restaurante 1º de Dezembro, Adalberto falava amavelmente das suas tertúlias lisboetas no Botequim da Graça, com Natália Correia, dos momentos de juventude passados com o seu coetâneo, amigo e poeta António Barahona e ainda da sua paixão pela poesia de Mário Beirão. No meio destas e de outras narrações de vida e literatura, mencionou um facto sobre Vergílio Ferreira que logo me atraiu a atenção.

Adalberto Alves referiu que Vergílio Ferreira foi seu vizinho nas Azenhas do Mar. Um dia o escritor natural de Gouveia confidenciou-lhe que naquela altura tinha O meu Coração é Árabe por livro de cabeceira. Trata-se da antologia dos poetas do Gharb al-Andalus (ocidente ibérico durante o período islâmico da Península) organizada e traduzida por Adalberto Alves e publicada pela primeira vez em 1987. Mais, Vergílio Ferreira disse-lhe ainda que, ao ler os poemas dos poetas do Gharb «parecia-lhe ler um poema escrito por um português».
Adalberto Alves transmitiu-nos esta memória com uma certa intensidade e honesta satisfação. Sentiu-se uma vibração no ar. Mas a satisfação não era por causa de Vergílio Ferreira homenagear a qualidade da tradução. Não era vanglória. Era porque – assim o senti eu – a intuição do autor de Manhã Submersa incidia no facto de haver consubstancialidade entre a alma poética do Gharb e a de Portugal. Não influência, nem proximidade, sequer fraternidade: identidade, íntima e espiritual, entre Gharb al-Andalus e Portugal.
No verbo da carne poética, entre Gharb e Portugal: uma continuidade anímica.



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