Islão e identidade portuguesa: notas culturais no Dia de Portugal

Hoje é dia 10 de junho, «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas», uma data que celebra Portugal, a cultura e a(s) identidade(s) portuguesa(s), na suposta efeméride do falecimento, em 1580, de Luís de Camões, autor d’Os Lusíadas. Este é, como sabemos, um dos grandes livros de poesia que mais contribuem para tecer os pensamentos, os mitos e as narrativas nacionais, outro deles sendo, sem dúvida, Mensagem, de Fernando Pessoa.

É sabido que a celebração deste dia foi estabelecida ante litteram em 1880, por D. Luís, enquanto «Dia de Festa Nacional e de Grande Gala», a festividade tendo sido entretanto objeto de apropriações, reinterpretações e revisitações ao longo dos anos, inclusivamente de matriz cultural, política e religiosa, uma delas se patenteando na designação «Dia do Santo Anjo da Guarda de Portugal», proclamado pela Igreja Católica em 1952.

Islão e identidade portuguesa: um discurso ambivalente

Nos mitos e nas narrativas da identidade portuguesa, o Islão joga um papel fundamental: por um lado (o mais visível), porque Portugal nasce no contexto da Cruzada do século XII, como reino cristão que contribui para a chamada Reconquista; por outro (mais oculto ou ocultado), porque a presença multissecular dos muçulmanos no ocidente ibérico – outrora Gharb al-Andalus, logo Portugal – fez com que a contribuição linguística, cultural e humanista dos árabes e dos muçulmanos tenha sido um fator na própria construção da identidade portuguesa, aqui entendida em sentido lato, aberto e cultural. Para ter uma noção intuitiva disso, basta pensar nas milhares de palavras portuguesas com origem etimológicas no árabe.

Há, no discurso sobre Islão e Portugal, uma patente ambivalência, que persiste no debate contemporâneo. Com efeito, se a primeira posição é largamente proposta pelos media e por uma certa representação orientalista e de «choque das civilizações», que vai até à islamofobia e que, infelizmente, prolifera no psiquismo coletivo, a segunda foi, contudo, defendida por alguns entre os maiores intelectuais e artistas portugueses contemporâneos, entre os quais Fernando Pessoa e Agostinho da Silva.

Na década de 1910, Pessoa celebrava os árabes como «nossos maiores», elogiava a «tolerância» e a «livre civilização» estabelecidas pelos muçulmanos na Península, e afirmava que «a alma árabe é o fundo da alma portuguesa», assim reconhecendo, em sentido identitário, o legado cultual e espiritual do al-Andalus (711-1492) e dos próprios muçulmanos que viveram no Reino de Portugal (até à expulsão deles e dos judeus, por D. Manuel, em 1496).

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Fig. 1. Fernando Pessoa, Espólio [BNP,/E3, 48H-23r]

Por sua vez, o filósofo portuense Agostinho da Silva defendeu a herança islâmica em Portugal em várias intervenções e de várias formas ao longo da vida, tal como aconteceu no ensaio «Realidade e sonho» de 1970: «temos de descobrir e formular a identidade da mensagem divina e humana que veio, aos Portugueses do total, pelas palavras de Cristo, de Maomé ou de Buda, ou se exprime por canto, dança ou escultura ou silêncio, desde os orixás africanos às liturgias malaias.».

Além disso, Agostinho assumiu o Islão – no sentido etimológico e religioso da palavra islām, enquanto «entrega a Deus» – como a atitude filo-sófica por excelência, no livro Sete Cartas a um Jovem Filósofo, de 1945:

Aqui tem você um conselho que lhe poderá servir para a sua filosofia: não force nunca; seja paciente pescador neste rio de existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte. Deixe que tudo suceda como um fruto maduro que se abre e lança no solo as sementes fecundas. Que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida. Islamismo, claro. Estamos todos na mão de Alah. Alah fará de nós o que entender.  […] E para que lhe servirá a você construir um sistema filosófico que não amadureceu dentro de si, e não fez corpo consigo, que você não tem de dar ao mundo, por uma obrigação que o excede, como às mulheres acontece com os filhos?

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Fig. 2. Opúsculos de Agostinho da Silva (O Islamismo; Maomet – Suratas de Meca)

Para além do folclore «mouro»: cultura portuguesa e teologia islâmica

É importante relembrar que o próprio Fernando Pessoa – cujo pensamento Agostinho da Silva interpretou no seu Um Fernando Pessoa de 1958 – também se debruçou sobre a referida atitude, de serena entrega a Deus, que define a espiritualidade da religião monoteísta pregada por Muḥammad (Maomé), e revelada através do Alcorão na Arábia do século VII. Sabemos que Pessoa estudou teologia islâmica através da leitura de obras entre as quais as de Theodor Nöldeke e que o Islão, assim como o al-Andalus e as culturas árabe e persa, constituíram interesses significativos para o autor da Mensagem.

Tendo Pessoa refletido sobre a presença árabe e do al-Andalus na identidade portuguesa, oportuno será, considerando a data comemorada, referir que um dos textos em que o próprio Pessoa mais reflete sobre o Islão, enquanto religião e forma de espiritualidade e de pensamento, foi produzido pelo poeta num dia 10 de junho, nomeadamente a 10 de junho de 1912. Trata-se de um soneto em inglês, conhecido como «The Arab Sage» («O Sábio Árabe», v. Fig. 3).

Neste poema, Pessoa representa alguns dos aspetos fundamentais do Islão e da teologia islâmica, particularmente a serena aceitação do decreto divino que consubstancia a entrega voluntária a Deus dos muçulmanos, assim como a doutrina da Unidade e Unicidade de Deus (tawḥīd), que define o monoteísmo pregado por Muḥammad. No poema, Pessoa retrata a difícil situação de um pai – um sábio árabe – no momento de uma duríssima provação, ou seja, a morte do seu filho:

The Arab sage’s child lay dead and blue’d
And1 he bent nearer eyes into the scroll
His trembling glance scarce read as understood,
But he was master of his own control.

“God is great and all things are in His hand;
Both our good and our evil are His good;
Our life we cannot will nor understand,
But He knows all and all is as He would.”

This he thought, back of what he dreaming read,
And the reality of his dead child
Became a corner of vision, something dead
To thought; that scarce his living thinking whiled
From God, whose everyness is everything.

And he read on till morn wrought its brief spring.

É difícil afirmar que Pessoa, apesar de ser astrólogo, tenha escrito ou datado este poema de propósito a 10 de junho, e que tenha sido por causa do Islão ser um tema envolvido na questão da identidade portuguesa (um tema, aliás, central em Pessoa em 1912). Contudo, como se trata de um dos autores e pensadores lusos que mais contribuíram para o reconhecimento do Islão entre os elementos e vetores da formação da própria «alma portuguesa», oportuno será assinalar esta curiosa sincronicidade, no contexto de uma mais geral mapeamento cultural sobre o Islão na literatura, nas artes e no pensamento portugueses contemporâneos e particularmente no modernismo de Orpheu.

fernando pessoa islão poema

Fig. 3. F. Pessoa, Espólio [BNP/E3, 49A3-6r]

Islão e Portugal hoje: uma ocasião para o diálogo?

Assim, o autor do novo mito de Portugal em Mensagem – uma tentativa de ultrapassar a narrativa camoniana das Cruzadas católicas, para projetar os lusitanos numa futura era cosmopolita e universalista (o «Quinto Império» de Pessoa) -, e que admitiu o Islão como uma das matrizes fundamentais da cultura e da alma lusa, deixa-nos mais um texto – e um pretexto – para refletirmos sobre o papel do Islão na cultura e no discurso identitário português e europeu. Uma reflexão que, aliás, tem estado a acontecer, como testemunha a imprensa internacional, em artigos saídos nos últimos anos, entre os quais um de Robert Fisk em The Independent e outro de Marta Vidal, esta tendo entrevistado, por Al Jazeera, alguns dos atores deste debate na academia e na cultura lusitana, como Filomena Barros, Cláudio Torres, Susana Martinez e Adalberto Alves (entre outros).

Achamos inclusivamente que grandes escritores, artistas e intelectuais do passado – mas sempre atuais – como Pessoa, Agostinho e ainda Teixeira de Pascoaes, entre outros, se forem lidos com maior atenção, nos permitem pensar sobre Islão e Portugal, não só para além das narrativas folclóricas e lendárias dos «mouros» e das «mouras encantadas», mas também ultrapassando – ou pelo menos reequilibrando e tornando mais complexa e polifónica – a representação de Portugal enquanto perpétua vanguarda da Cruzada num fatalismo de «choque das civilizações». Assim se mostrará outro e diferente caminho, aliás dois. Um deles é o do diálogo, da fraternidade e da aliança entre civilizações, nações e comunidades religiosas. O outro é o desejável, necessário e honesto caminho do conhecimento – isto é, do estudo – dos fundamentos e das especificidades da religião islâmica, que informam uma inteira civilização, a qual, no seu apogeu cultural medieval, contribuiu de forma relevante para a formação de Portugal e da própria Europa.

Quiçá Portugal seja uma ocasião para humanos trilharem tais caminhos. O dia de hoje, Dia de Portugal, é-nos uma ocasião, feliz, para o dizer e o desejar.

Lisboa, 10 de junho de 2020

Fabrizio Boscaglia

Como citar este texto:

Fabrizio Boscaglia, «Islão e identidade portuguesa: notas culturais no Dia de Portugal», página web, 10 jun. 2020, consultada a 10 jun. 2020, https://fabrizioboscaglia.com/2020/06/10/islao-e-identidade-portuguesa-notas-culturais-no-dia-de-portugal/

Versão em PDF:

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Podcast:

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