Guimarães num inverno quente: entre surtos de islamofobia e ecos luso-islâmicos

Gosto de viajar ao Norte. Não gosto de participar em debates sobre a atualidade. Desta vez, cheguei a um acordo entre estas duas instâncias internas. Tal foi graças à simpatia de Orlando Coutinho, meu aluno, que me dirigiu o convite para participar, em Guimarães, numa conferência-debate sobre «Xenofobia, Islamofobia e Racismo», organizada pela Associação Artística Vimaranense, e decorrida a 17 de fevereiro de 2024. Eis, então, o diário de um fim de semana passado em Guimarães, entre debates e passeios.

Estação de Santa Apolónia, Lisboa.

O alfa pendular Santa Apolónia – Campanhã leva-me docemente pela tarde de um sábado quentinho de fevereiro. Preparo com calma, no comboio, a minha intervenção, revendo as notas de uma palestra do colega e amigo AbdoolKarim Vakil: a islamofobia é uma forma de racismo, uma limitação do espaço aceitável de expressão pública do sujeito, nomeadamente, dos muçulmanos. Sei bem disso, vejo-o acontecer, apesar de Portugal ainda ser um dos países europeus em que esta tendência nefasta se manifesta em medida relativamente menor. Contudo, a possível subida de consensos do partido islamofóbico Chega, na iminência das eleições políticas de março de 2024, é ao mesmo tempo motivo e indício de um degradar da situação neste sentido (de falta de sentido).

Ora, precisamente em Guimarães, houve em inícios de 2024 dois episódios de islamofobia, a serem condenados: a vandalização de uma parede de uma loja pertencente a um muçulmano de origem do Bangladesh; e a manifestação de nacionalistas de extrema-direita contra o direito de os muçulmanos rezarem no espaço público.

«Aqui nasceu Portugal», lê-se num famoso pano de muralha de Guimarães. O que os referidos (e outros) nacionalistas não se lembram – ou não sabem, já que o próprio sistema escolar nem sempre o ensina – é que Portugal, apesar de ter nascido no contexto de uma cruzada contra reinos muçulmanos (e também de guerras contra reinos cristãos), admitiu logo, a partir da sua formação, os próprios muçulmanos, bem como os judeus, que já conviviam com os cristãos na Península Ibérica no contexto islâmico de al-Andalus (711-1492). Os membros daquelas duas comunidades foram, de pronto, tornados súbditos do Reino de Portugal, por expressa vontade e decisão do próprio soberano Afonso D. Henriques. E os seus imediatos sucessores deram continuidade à sociedade multicultural e multirreligiosa, construída e mantida, durante séculos, graças à legislação islâmica.

Centro histórico de Guimarães. Fotografia de Joaomartinho63.

Durante mais de três séculos, em plena Idade Média, os muçulmanos foram portugueses, tal como os judeus e os cristãos, contribuindo para a sociedade e a cultura lusas de forma inapagável e significativa. Só em 1496 D. Manuel I os expulsou, para fazer de Portugal católico um reino extremamente exclusivista e intolerante, no qual daí a pouco seria instituído o Tribunal do “Santo Ofício”, a Inquisição (1536). Eventos terríveis na história da civilização peninsular. Foi esse o «pecado» do próprio D. Manuel I e de D. João III, segundo Agostinho da Silva. Uma «calamidade nacional» segundo Antero de Quental. Um «crime» por ser expiado, segundo Fernando Pessoa. Os muçulmanos só regressaram a Portugal em 1968: a Comunidade Islâmica de Lisboa foi a primeira a ter sido fundada na Península Ibérica desde os tempos da Inquisição.

Não há Portugal sem Islão. Isto é, Portugal nunca seria Portugal, nas suas peculiaridades culturais e identitárias, sem as suas componentes constitutivas de matriz árabe, amazigh, moçárabe e islâmica, e inclusivamente outras, mais recentes, de ascendência indo-africana e pós-colonial. Nem a civilização islâmica seria o que é, na sua riqueza cultural e espiritual, sem a história e contributo do ocidente ibérico, outrora o Gharb al-Andalus, logo Portugal. Basta saber que dois dos primeiros mestres espirituais do doctor maximus do Sufismo (ibérico e não só), Ibn ʿArabī (1165-1240), eram naturais, um de Loulé (al-ʿUryānī), outro de Mértola (al-Mīrtulī). Ou que o importante rei-poeta al-Muʿtamid (1040-1095) nasceu em Beja e viveu em Silves. Os arabismos na língua portuguesa são, por sua vez, aos milhares.

O público, na Associação Artística Vimaranense, ouve-me tocar nestes temas com interesse e alguma surpresa.

Da esquerda: Francisco Teixeira, Paula Oliveira, Orlando Coutinho, Sílvia Lemos, Fabrizio Boscaglia (fotografia de Jorge Lima).

O evento foi organizado para dar uma súbita resposta de contraste aos episódios de islamofobia em Guimarães acima referidos. O primeiro orador foi o nosso anfitrião, Francisco Teixeira, presidente da associação e professor de filosofia. Franco, provocador, brilhante, fez um primeiro diagnóstico do surto de islamofobia em Guimarães, lançando no debate os temas da complexa e vertiginosa rapidez das transformações sociais e migratórias, do machismo da iconografia identitária da extrema-direita, do direito à prática – inclusivamente pública – dos diferentes cultos religiosos. Não poupa uma ou outra observação crítica no que respeita ao protagonismo católico que nota no espaço público do território e que, a seu ver, pode ser excessivo. Pimenta da casa, dir-se-ia, numa associação cujo logótipo parece reproduzir símbolos maçónicos, com tudo o que daí vier, ao longo da história, em termos de competição sociopolítica com a Igreja Católica. O tom, de qualquer das formas, é sempre cordial e respeitoso, e o clima é construtivo.

A palavra passa, de seguida, a Sílvia Lemos, da Comissão Justiça e Paz da Diocese de Braga, da Igreja Católica. A sua intervenção caraterizou-se por um tom dialogante, ao visar uma aproximação teológica e fraterna entre cristãos e muçulmanos. A islamofobia é fruto de ignorância e de falta de espiritualidade, salientou a oradora. Concordo. A referência que fez ao Documento sobre a Fraternidade Humana, assinado por S. S. o Papa Francisco e o Grão Imame de al-Azhar, Aḥmad al-Ṭayyib, em 2019, é um natural elo de ligação com a minha intervenção, que se lhe segue imediatamente.

Começo por citar os dois líderes acima mencionados:

«Em nome de Deus, que criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e os chamou a conviver entre si como irmãos, a povoar a terra e a espalhar sobre ela os valores do bem, da caridade e da paz.».

Continuo, citando Afonso D. Henriques no Foral de Lisboa de 1170:

«D. Afonso Henriques, em conjunto com meu filho D. Sancho faço carta de fidelidade e firmeza a vós mouros que sois forros em Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer, para que na minha terra nenhum mal injusto recebais […].».

Quero retomar o problema da ignorância levantado por Sílvia Lemos, logo passo a relembrar que, tanto Jesus como Muḥammad (a Paz esteja sobre eles) pediram a Deus (louvado seja Ele) de perdoar os seus opressores, porque estes não sabiam o que estavam a fazer. Uma palavra de misericórdia, sem negligenciar o rigor: refiro, ainda, a acima citada questão da islamofobia enquanto forma de racismo, antes de passar a palavra à última oradora.

Fotografia de Jorge Lima.

Paula Oliveira é Vereadora da Ação Social da Câmara Municipal de Guimarães e explica o ponto de vista das suas instituições, descrevendo as ações que a autarquia tem aplicado para acolher os migrantes e para ajudar os muçulmanos que foram objetos das referidas ações islamofóbicas.

Orlando Coutinho, como moderador, abre então a sessão à intervenção do público, durante a qual é, inclusivamente, sugerida à Vereadora a possibilidade de se construir uma mesquita em Guimarães, o que sem dúvida iria dignificar a comunidade islâmica local e ao mesmo tempo tornar o culto religioso mais (re)conhecível e integrado na vida social e no dia a dia da cidade.

A razão principal pela qual raramente participo em debates desta natureza é que facilmente se tornam em espaços de regurgitação de medos, raivas, preconceitos, enquanto eu acredito profundamente que as provocações e as discussões polémicas não levam a nada de bom. Dito isto, saliento que a conversa com o público foi interessante e enriquecedora. Houve, é certo, algumas provocações racistas e preconceituosas da parte de um indivíduo de quem não recordo o nome, pronta e eficazmente respondidas por nós oradores. Bem falou, Francisco Teixeira, quando comunicou não se identificar no «nós» exclusivista e racista que esse indivíduo do público contrapunha aos muçulmanos na Europa: esse «nós» não somos nós, não o somos enquanto europeus, nem o queremos ser.

Saímos do evento com a sensação que foi oportuno realizá-lo e que alguma boa semente foi lançada, para contrastar os fenómenos nefastos na sociedade.

O jantar, no restaurante Oriental (tanto o nome como a comida foram bem escolhidos) foi uma grata continuação do debate. Os presentes (alguns dos oradores com as famílias) continuaram a falar de religiões e sociedades. Uma conversa interessante desenvolveu-se a nível teológico: foi-me apresentada a tese – uma reinterpretação de um certo pensamento “gnosticista” – pela qual Deus seria limitado e, porventura, precisaria de ser aperfeiçoado, ou até salvo, pelo ser humano. Assim, o problema do mal ficaria supostamente resolvido e o ser humano teria o protagonismo teológico que a sua condição mortal fatalmente lhe retira. Tese errada, segundo acredito, como, aliás, qualquer opção titânica, prometeica e luciferina, que não assuma a Omnipotência, a Omnisciência, a Unidade e a Absoluta Bondade de Deus.

É preciso entender que o bem e o mal que experimentamos nesta existência terrena são provações destinadas ao desenvolvimento espiritual da criatura humana, o gozo e a dor nossos não implicando uma limitação do Criador, nem um dualismo ou pluralismo teológicos. Sei que determinadas opções por vezes ditas “gnosticistas” excitam o ego, porque o fazem sentir poderoso. Contudo, esse é precisamente um dos argumentos contrários a tais opções: uma teologia de que o ego gosta é, regra geral, uma teologia errada ou, na melhor das hipóteses, um teologismo, ou seja, uma ideologia teológica, contrária à autêntica epistemologia da Verdade. Não há conhecimento de Deus sem a humilde contemplação da Revelação, e sem a radical transformação (ou “morte”) do ego. Desta “morte”, o próprio ego – que este ponto fique bem entendido – não gosta, não pode gostar. Uma das razões pelas quais o Islão é objeto de aversão é, aliás, esta: islām significa rendição, entrega, abandono, submissão a Deus. É o contrário do triunfo do ego. O ego não gosta disso, nenhuma (in)civilização baseada no ego pode gostar disso.

Claustro do Museu de Alberto Sampaio (Guimarães).

No domingo, tive o privilégio de ser conduzido num passeio pelo centro histórico de Guimarães, por dois anfitriões de eleição, os já mencionados Francisco Teixeira e Orlando Coutinho, que nesta cidade cresceram. Fico-lhes grato. O convívio foi muito bom. Entre praças e muralhas, tropeço em possíveis pequenos ecos de arquitetura típica do Norte África e do chamado mundo arábico-islâmico, quiçá diretas ou indiretas influências da cultura ou das modas do al-Andalus. É o caso de algumas passagens edificadas entre os prédios, a ligar os dois lados da mesma rua, que vi no centro de Guimarães. Na arquitetura árabe, este elemento arquitetónico chama-se sābāṭ. No bairro “árabe” de Lisboa, Alfama, encontramos o mesmo tipo de construções.

Centro histórico de Guimarães.

No Museu de Alberto Sampaio, onde se guarda o loudel utilizado por D. João I na Batalha de Aljubarrota (1385), reparo numa fascinante, enigmática e invulgar escultura de alabastro que representa Nossa Senhora da Piedade (Inglaterra, séculos XV-XVI). Maria tem um véu particularmente pronunciado, o que, na minha especulação comparativa, a aproxima ainda mais, nesta iconografia, ao imaginário islâmico, filho de uma religião em que Maria e Jesus têm, aliás, um importante papel (a Paz esteja sobre eles).

Nossa Senhora da Piedade (Inglaterra, séculos XV-XVI). Imagem do site do Museu de Alberto Sampaio.

No claustro do museu, gravado num banco de pedra, aparece um tabuleiro de jogo, medieval ou anterior, possivelmente de Alquerque (antepassado do jogo das damas), um legado cultural do al-Andalus. Os jogos da política religiosa também são antigos, as suas regras parecem ter sido gravadas na pedra, por serem difíceis de apagar ou mudar. Os jogadores estão por vezes ocultos. Jogos arriscados ou, segundo alguém, entusiasmantes, tal como o foram os jogos de crianças que os meus anfitriões me contaram, ao relembrarem a infância passada a saltar, a correr e a esconderem-se entre as muralhas e os claustros de Guimarães, antes da gentrificação turística do centro histórico.

Claustro do Museu de Alberto Sampaio (Guimarães).

É o início da tarde quando apanho o alfa pendular no Porto, para voltar à capital. Chego a Santa Apolónia pelas cinco. São muitos os impulsos que recebi para refletir, durante o meu trânsito por Guimarães neste fim de semana de sol de inverno. Sinto-me descansado, energizado, enriquecido. É o efeito que o Norte habitualmente me faz. Contudo, também me sinto desassossegado: será que Portugal irá tornar-se mais islamofóbico por via da ação nefasta do Chega e dos vários “partidos do ego” que por aí fora existem? Será que teremos um Portugal mais parecido com a Itália e com a França no que diz respeito ao aumento do discurso do ódio? Espero que não. E… será que chegou o tempo para eu passar a participar mais em debates sobre atualidade? Continuo a sentir que não é a minha praia, apesar de a experiência vimaranense ter sido boa e, desejavelmente, propícia.

Enfim, uma vez mais, tal como Bernardo Soares, registo:

«Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão».

Fabrizio Boscaglia

Lisboa, fevereiro e março de 2024

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Textos citados (além dos que remetem para páginas internet via link):

Pessoa, Fernando, Ibéria: Introdução a um Imperialismo Futuro, Edição de Jerónimo Pizarro e Pablo Javier Pérez López, Posfácios de Humberto Brito e Antonio Sáez Delgado, Lisboa, Ática [Babel], 2012.

Quental, Antero de, Causas da Decadencia dos Povos Peninsulares nos ultimos tres seculos, Discurso pronunciado na noite de 27 de Maio na sala do Casino Lisbonense, «Conferencias Democraticas», Porto, Typographia Commercial, 1871.

Silva, Agostinho da, «Considerando o Quinto Império», in Tempo Presente, n.º 17-18 (1960).